Ô, lá em casa! Ei, gostosa! Se você é mulher, certamente já ouviu essas frases de estranhos alguma vez na vida. Talvez tenha, ainda, escutado coisas possivelmente mais invasivas, ou assobios e grunhidos. É algo que acontece com todas, invariavelmente. Mas há, no entanto, um ponto que diferencia uma mulher da outra nestas situações: a reação ao assédio.
Enquanto algumas não se importam e acham até lisonjeiro, outras entendem as cantadas como uma forma de violência e ofensa.
"Estas mulheres que gostam realmente existem, mas, de acordo com nossos levantamentos, são apenas 17% da população brasileira feminina", pontua a jornalista Juliana de Faria Kenski, uma das criadoras do coletivo feminista Think Olga, responsável pela campanha Chega de Fiu-Fiu, que se propõe a lutar contra o assédio sexual em espaços públicos.
Não existe um problema com quem gosta, cada uma sabe de si, mas a questão é quando o homem coloca todas as mulheres na mesma situação. Porque, para cada uma que curte a cantada, ele está humilhando outras cinco. Juliana conta que sempre se incomodou com este tipo de situação, especialmente depois de um episódio que viveu aos 11 anos de idade.
Eu voltava de uma padaria quando o motorista de um carro abriu a janela e gritou algo ofensivo. Foi muito surreal, eu nem sabia direito o que tinha sido aquilo, mas comecei a chorar. Uma senhora, então, me parou e disse para eu deixar de ser boba, porque elogio é bom. Por muito tempo, achei que tinha que aceitar, porque talvez fosse bom para mim.
A confusão de sentimentos é um ponto comum relatado entre as assediadas, bem como a dúvida sobre a responsabilidade daquela situação. Por serem alvos de cantadas desde muito cedo, as mulheres acabam se questionando se têm algum tipo de culpa pelo assédio, especialmente no que diz respeito à maneira como se vestem.
Afinal, uma peça de roupa poderia justificar e encorajar o comportamento de outra pessoa? Usar uma saia curta ou uma blusa decotada daria o direito aos homens de cantarem as mulheres na rua?
"De forma alguma", defende Carla Cristina Garcia, professora doutora em ciências sociais pela PUC de São Paulo.
A responsabilidade pelo assédio é da sociedade machista que cria essa condição para que as mulheres sejam agredidas. Devemos nos cobrir todas para não sofrermos violência? Cantadas são uma forma de abuso porque tratam a mulher como se seu corpo fosse público. Se as mulheres hoje reclamam e antes não reclamavam, é porque hoje sabem que é uma violência.
Na mesma proporção que crescem as queixas femininas, aumenta também a revolta de homens que, pelos mais variados motivos, consideram absurda a ideia de que mulheres possam se incomodar com cantadas na rua.
Em comentários masculinos na página do Think Olga, por exemplo, é possível ver opiniões que defendem, entre outras coisas, que mulheres que se vestem com roupas curtas "não se valorizam".
"Para os homens da sociedade ocidental, a mulher é um objeto. Sendo assim, como um objeto pode reclamar? Objeto não tem vontade", explica a professora Carla Cristina.
Em uma pesquisa realizada com 7.762 mulheres pelo coletivo feminista de Juliana Kenski, 90% das entrevistadas disseram já ter trocado de roupa por receio do assédio no lugar em que iriam. Outras 81% garantiram já ter deixado de fazer alguma coisa — sair a pé, passar em frente a uma obra etc — por medo de serem assediadas.
No entanto, o que poucas pessoas sabem — tanto homens quanto mulheres — é que aquelas que se sintam ofendidas por cantadas na rua podem até mesmo recorrer à Justiça. De acordo com o advogado criminalista Lélio Borges, mesmo se tratando de situações subjetivas, há casos em que é cabível punição, inclusive de detenção.
Se o ato é realizado em local público, mediante gestos obscenos, podemos estar diante do crime de ato obsceno, cuja punição é de três meses a um ano de detenção. Se da cantada derivam ofensas que firam a dignidade ou o decoro da vítima, estaríamos diante de um possível crime de injúria, com sanção de um a seis meses de detenção. E, ainda, uma investida que é feita em local público, de forma ofensiva ao pudor, pode configurar a prática de contravenção penal denominada importunação ofensiva ao pudor, que é apenada com multa.
Juliana Kenski, uma das fundadoras do coletivo feminista Think Olga, que luta contra o assédio em espaços públicosMontagem/Arquivo Pessoal/thinkolga. Com